A reestruturação socioeconômica em torno da informação impactou as rotinas e o trabalho das agências responsáveis pela persecução criminal.
Ainda que parte expressiva das informações contidas em um smartphone repouse em bancos de dados de aplicações de internet, o interesse em apreender e examinar esses aparelhos persistirá. É que se popularizou entre os aplicativos de mensagens instantâneas a oferta da criptografia ponta-a-ponta, aumentando, portanto, o desejo de apreender umas das pontas, obtendo assim acesso ao conteúdo descriptografado da comunicação.
O aumento no volume de apreensões de dispositivos informáticos, contudo, não autoriza o descumprimento de normas técnicas e legais. Por isso, não é possível substituir laudos periciais sobre smartphones por Relatórios de Investigação Criminal (RIC) elaborado por policiais civis.
É que o Código de Processo Penal exige a realização de exame pericial (art. 158, CPP), por perito(a) oficial (art. 159, CPP), respeitando-se as regras atinentes à cadeia de custódia (art. 158-A e ss. do CPP).
Ligar um telefone, abrir o aplicativo de mensagens instantâneas, ler e transcrever o conteúdo são habilidades triviais. Não é preciso ser um expert para executá-las. Mas modificar o conteúdo das informações armazenadas – ainda que involuntariamente – é ainda mais fácil.
Por isso, todo o processo de identificação, coleta, aquisição e preservação da evidência digital deve ser conduzido por profissional capacitado e de acordo com os princípios e normas técnicas aplicáveis ao caso concreto, a fim de preservar integridade, fiabilidade, inalterabilidade e auditabilidade desta espécie de prova.
Estas são atribuições de um(a) perito(a) criminal, a quem compete coletar e preservar as evidências. A extração de mensagens em um aparelho celular, portanto, somente pode ser feita por um perito criminal.
É neste sentido a orientação do Ministério da Justiça: “a evidência digital deve ser examinada apenas por peritos criminais com treinamento específico para esse propósito”, orientando ainda que, “no caso de órgãos de perícia que tenham auxiliares de perícia, a manipulação de evidências por parte destes dar-se-á somente se devidamente capacitados e supervisionados por peritos criminais” (Procedimento Operacional Padrão do Ministério da Justiça e Secretaria Nacional de Segurança Pública para Exame Pericial de Equipamento Computacional Portátil - POP nº 3.2).
Os(as) investigadores(as) possuem diversas outras atribuições e competências. Por isso, os Relatórios de Investigação Criminal (Item 05 do Anexo 01 da Instrução Normativa nº. 01, de 17 de abril de 2013 da Polícia Civil, SSP/BA) não contemplam nenhum dos tópicos essenciais para a preservação de uma evidência digital previstos no já citado protocolo estabelecido pelo Ministério da Justiça ou nas demais normas técnicas (ISO nº 27037 - Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital; RFC 3227 – Coleta e armazenamento de evidências para Computação Forense).
A ausência dessas e de outras informações essenciais impossibilita a defesa de avaliar as atividades realizadas. Se não for possível que as partes verifiquem a correição do método científico ou da técnica empregada a prova carecerá de confiabilidade e, por consequência, não deve ser admitida.
Registre-se que o cuidado com a rastreabilidade das provas produzidas não possui o condão de presumir a boa ou má-fé de agentes estatais, “mas sim de objetivamente definir um procedimento que garanta e acredite a prova independente da problemática em torno do elemento subjetivo do agente” (Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa - 2015).
Não há nenhum impedimento que sejam elaborados RICs a partir dos laudos periciais dos celulares apreendidos, afinal os(as) investigadores(as) são os(as) primeiros(as) destinatários(as) desta prova e a eles(as) cabe auxiliar a autoridade policial a elucidar os crimes. O que a legislação não admite, contudo, é que sejam utilizados em substituição ao laudo pericial e que as evidências digitais sejam manipuladas sem a observância das normas técnicas.
Artigo originalmente publicado na coluna Diálogos Digitais do jornal Bahia Notícias